sábado, 4 de outubro de 2014

Não perca a hora




Relógios

“... é o relógio, porém, que mais me espanta

pois se não vens, o mísero se atrasa

e, se vens, o ditoso se adianta”

Mensuração de intervalos de tempo sempre foi preocupação dos

humanos desde épocas imemoriais – dos chamados relógios d ́água

(clepsidras) às ampulhetas e, sucessivamente, aos mecânicos movidos a

rodas denteadas, molas, eletricidade, pêndulos e os de pilha de quartzo

da modernidade. Assim, como regra, o homem inventa para virar escravo

da invenção – quem não é dependente de horário? Não é odioso o relógio

de ponto uma estultice burocrática que prioriza o castigo ao invés de

estimular a retitude no cumprimento do dever? E não existe amor ao

relógio que demarca instante vivido da vida, ou da vida já vivida?

Ainda criança, não tinha preocupação com esse terrível cerceador

dos bons momentos disponíveis, quando minha madrinha deu-me o

primeiro de pulseira. Acho que não gostei, desde o início, embora fosse ele

uma pequena jóia de ouro branco, oval, ornada com pequenos brilhantes e

safiras! Anos depois, foi adaptado como anel, sucesso feminino ainda hoje!

Em compensação, ganhei outro que realmente me entusiasmou -

blindado, capa preta, com mostrador automático incluindo calendário; por

curto período não vi algo semelhante, pois desapareceu, subitamente, como

desaparecem as coisas súbitas...

Em época longínqua quando ainda se passeava pelas ruas São Bento,

Direita, Barão de Itapetininga, Arouche, meu grande prazer era admirar

relógios expostos nas diversas vitrinas. Conquanto a moda dos relógios

pulseira se expandisse desde Santos Dumont, minha fixação eram os de

bolso super delgados, apesar de contar com os próprios da família ,

patacões (cebolões) de ouro, duas capas: o Patek Philippe, de meu avô

Costa Carvalho; outro, austríaco, com inscrições do meu avô Barão; e um

modesto Cyma, deixado pelo meu tio avô Mundinho. O primeiro foi

perdido de maneira soez – um falso amigo resgatou-o do penhor,

juntamente com nosso faqueiro de prata e tratou de vendê-los a outrem!

No meu 21o aniversário, um Cyma pulseira foi presente de minha avó

Argentina, adquirido com sacrifício, pois que, ela já debilitada, morreria

dois meses após. Pude usá-lo até 1963, quando o Sr. Avelino Reis, distinto

cliente e negociante do ramo, encomendou-me o Eterna-Matic, em uso até

Tempo de noivado, 1947, “midnight, the stars and you” (antiga

melodia americana): vidrado que estava em um relógio de pulso Eska,

exposto na rua do Arouche, comprei-o para Sylvia às custas de

vencimentos atrasados recebidos em tempo hábil. Ulteriormente, consegui

um Tissot para minha primeira filha e outros moderninhos para as duas

Tempo de viagem, l975, Grindelwald. Meu “coração balançou” entre

maravilhas – a imensidão das alturas do Jungfrau e, por pendor inato, um

relógio em exposição numa joalheria local – de mesa, uns 25cm de altura,

parecendo ser construído sobre colunas de ouro, maquinismo aparente,

pêndulos rotativos, e de aquisição inviável. Quase 40 anos decorridos

tal preciosidade suíça fez-se lembrar por meio de uma simples miniatura

sua fabricada na China em metal cromado que, além de tudo, constituiu

a derradeira lembrança oferecida por Pailag Hadjig Kebenlian, “Paulo

Amigo”, ou “Palhá” da nossa rua Vergueiro dos anos 30/40. Ele aos 91

anos de idade ainda tinha o prazer de presentear com os seus guardados

dos mais variados modelos. Então, usei um deles, nacional – Champion

quartz – quando me dirigia ao seu velório na semana passada. Evocação

desmaia e o meu mundo torna-se mais minúsculo.

“Tudo passa sobre a terra” (José de Alencar) – o tempo

De fato, pouco reparei no interesse transitório acerca do alpino Cuco,

que cantava como a ave ao dar as horas, alegrando minhas filhas ainda

pequenas. Paradoxalmente, o Big Ben exibe “status” de eterno!

Todavia, exceto pelos dois herdados dos meus avós, nunca possuí

relógios chiques, famosos e, sobretudo, me arrependo de não ter adquirido

um carrilhão de pedestal. Em verdade, admirei muitos e virtualmente

consegui uma coleção maravilhosa!

E os sinos, também marcadores de tempo, precisam ser

mencionados. Um sino suíço, importado antes da 2a guerra, foi doação do

ilustre venerando Gastão Rachou que mandou trazer de sua fazenda para,

há 40 anos, valorizar o nosso sitio e tornar sempre viva a sua simpatia.

“Sino coração da aldeia

Coração sino da gente

Um a sentir quando bate

Outro a bater quando sente” (Antonio Correia de Oliveira)

-Ah! O que sinto quando pego o velho despertador alemão Yvel, dou

corda e sacudo como a um sino; momentânea e instintivamente julgo

sacudir para lá as minhas pobres lembranças – escondidas, nunca

extinguíveis. Há cerca de oitenta anos, esse modesto relógio foi comprado

no Largo da Concórdia e, em algumas ocasiões, esteve no prego!

Funcionando bem, ocupa local de honra em nossa sala, para, de longe,

mirar seus ponteiros e senti-lo perto do coração da gente, quando bate.

Luis Gastão Costa Carvalho Serro-Azul