Um olhar ( tirada em voga no
século 21) sobre a avenida...
Avenida longa, pedestre
aflito. Do alto, o relógio gozava daquela afobação- ponteiros
uniformemente acelerados , versus passos doidos para vencer quarteirões,
crescendo!
Bonde
aliviaria , machucando minguado ordenado. Porque não,
bicicleta ?
Porque ainda não era moda em
Paris, nem Milão., Berlim, ou ilhas Galapagos.
Quem aguardava o ansioso
pedestre só poderia ser o Arquivo Genial, AG, entre os íntimos. O trabalho
haveria de ser árduo para justificar os miúdos proventos mensais, vulgo
salários. Se desconto houvesse, a culpa recairia sobre a nefasta existência de
ponteiros nos relógios ou à deficiência na prática da corrida de fundo
pelo aflito.
...
...
O salão que abrigava o AG e ponha-se superlativo nisso, era inefável.Arquivos aos montes, escrivaninhas aos montes, cadeiras aos montes.Um verdadeiro monturo. Maquinas de escrever, não podiam ser ditas aos montes porque estavam montadas e fixas nas respectivas mesas. Montoeira de prateleiras, em rede, premonição do tal “net.”.
No
meio de tudo os operadores respectivos - os
extra-quadros - pois que era época extraordinária, inclusive dos extra
ordinários Emocionante era o dever de cada um deles - preencher datilografando,
30 fichas por expediente noturno de 4 horas, portanto razoável ,
sem qualquer intuito de atividade superior ao bom descanso, porém.
O agradável do
grupo de extra-quadros era ser de estudantes , na maioria.“Bando de
notívagas”, no sentido de vagabundos noturnos, para os outros
desagradáveis. Um, psicodélista, jeitão do Felix, da TV. Dois, o
exímio datilografo, taquigrafo, apostilhista.. Três, o tenor, pianista,.
quatro, cinco , até dez , qualquer adjetivo com algum” ista”, como
sufixo.
Todos sob o comando do
tacanho Chefinho, e sob o taco do Poderoso Chefão . Um não gostava
do outro e ninguém gostava . dos dois. E
meta única para toda gente: “deixar como está para ver como fica” (
aproximado de Lampeduza).
O Chefão, porque poderoso, era
vaidoso entre outros “osos”. . Chapéu Borsalino (modelo 1930), do vizinho e
futuro defunto, prescrição de sua pitonisa, lhe caia como uma
luva, durante o frio; no calor apertava como enxaqueca.
Em contradição, no frio ele era mais caloroso com os seus
funcionários:
- Seu Borsalino como lhe fica
bem o chapéu, até lembra o Maurice Chevalier!
-Nem tanto, nem tanto, meu
filho.
Ou,
por um lapsus linguae:
-Seu Boçalino ....
-Eu te puno, eu te puno seu...
O Chefinho, era bem caracterizado pela sua voz de comando,
sempre acatada com algumas restrições. Desde o início, meio e fim do
expediente, percorria as mesas dos seus extra-quadros emanando a profícua ordem
de serviço – “ vamos agarrar”
Desse modo, as respostas
só poderiam ser satisfatórias:
-e eu
com isso, dizia quem dormia;
- grande coisa,
respondia quem não estava acordado;
- é curioso, cochichava o que estava com sono.
No caso do tenor, a resposta
era cantada: uma área de ópera (não, não) , uma quadra de Nhô Totico ( de
lirismo camoniano para estimular bom humor):
pé de laranja sempre deu laranja , pé de goiaba sempre deu goiaba,
o que me implico é com pé de eucalipto, que nunca deu e não
dará jabuticaba...
ou um trecho patriótico, como “ heroicobrado ,
berçooesplendido “ (pronunciados sem o espaço devido, para assustar ou induzir o sono)
Fervorosa ladainha se
repetia a toda hora e acabava com o chefinho debruçado sobre
a escrivaninha , resmungando: “assim não dá – prefiro cursar odontologia
por correspondência”...
*
.
Com fito de
exteriorizar talentos , produziam
um diário da noite acerca do cotidiano, para ser lido no sábado à
tarde – A Voz do AG,
adaptado de um filme mudo Vozes
vociferantes.
E´ conveniente que o
leitor suspire por 5
segundos em solidariedade a tantas vozes.
Igualmente será
gratificante que se tome conhecimento de algumas noticias
publicados no referido periódico, sem duvida, poderosas para enriquecimento do
acervo cultural de todo cidadão.
* À semelhança de
um grande frentista de Trás os Montes implicado
com a quadratura da roda , um extra-quadro moreno
ingressou na Usp através das notas 1 , 0,5 e l, mercê exagerado
aumento de vagas. Alegre, ulteriormente, chegou a desembargador no seu
estado.Boa pessoa , além do mais.
* Pela primeira vez um duque
de dezena (macaco a cavalo) leva à Europa, um extra-quadro. Escala no
Rio, embarque do novo companheiro transatlântico. Já no
hotel optaram por um único quarto ( single, para o
recepcionista lusitano) , econômico para os dois , apesar de
haver apenas uma cama, de casal! .
Amanhecer em Portugal!
Ah! Pedro Álvares Cabral!
Ele acordou cedo, em
compensação o outro dormia para o resto da vida !
No distrito policial – ele e o
companheiro transcendental. já solenemente encaixotado.
Delegado: – Vossa
Senhoria terá que acompanhar o
finado.O resto é prá lá,. em seu país.
Ele: - Sei nada sobre este infeliz, nem tenho nada com
isso, foi um acaso .
Delegado: Só por acaso, nenhum
elemento dorme junto com outro, a não ser que esteja feliz. Meus pêsames e boa
viagem.
Na segunda feira seguinte, enquanto datilografava a
primeira ficha, ele recebia as
devidas condolências pela “mortalidade” que atingiu o seu esquisito
companheiro de viagem.
* Certo que não conseguiria
fazer alguém agarrar, o Chefinho
tentou agarrar-se a um cargo melhor, a conselho da pitonisa do Chefão.Assim, obstinadamente, agarrava o
D.O., no aguardo de nomeação. No domingo saiu o preenchimento por outro e, na
terça-feira, como consolo, o esclarecimento de que a vaga pleiteada
não existia. E na quinta, uma jogada política “o candidato não conta com
o apoio do Partido”
Consternados com esses
magníficos incidentes, os colegas, em peso, subscreveram atenciosa
moção: “ agora é a vez de você agarrar
alguém pelo pescoço”, parabéns antecipados.
* - Sou espanhol d’Espanha.
- E´ lógico, não precisa
reafirmar.
- É que
todos me chamam de espanhol de outra coisa.....
Com efeito, o tal sobrenome era cabível. – ao invés de datilografar 30
fichas, ele perfazia 150 ou mais nas 4 horas de trabalho o que nivelaria
o teto por cima .
Caxumba e quebranto lhe
conseguiram a
exoneração do serviço público..
Insuportável era o cheiro de corpo e cigarro do Cheirosinho.Ele permanecia nos poleiros remexendo a papelada, coisa que
nenhum dos outros se propunha..
Bom banho, e acidental ferimento concorreram para sua. demissão, aceita a contra-gosto e/ou contra- cheiro. Regiamente compensado, entretanto, com doação
perpetua de charutos cubanos, pela
família abonada., e uma caixa de sabonetes argentinos, como desagravo da Voz do
AG.
* Em vez da tradicional
peruada, acadêmicos promoveram faustoso jantar de faisões, engordados nos
jardins da Água Branca..O governador compareceu ao rega bofe. Bom
político, não deixou transparecer indignação quando soube que acabava de se
enlambuzar com asas fritas de suas aves de estimação..
* Na quarta feira, às 22
horas, nenhum dos colegas foi
ao jantar rotineiro -café com leite, pão com manteiga- no bar da esquina. Comemoravam o
40° aniversário do Conde ( humilde, colarinho duro e porte de nobre,
pobre). Seu lanche imutável era meia porção de goiabada ( 2,0 quilos por
semana). Porções desta, em pacotinhos, gentilmente enviadas pela mãe,
fizeram a festa..Foi uma verdadeira marmelada!
*
O“ The end” começou num sábado.
Dezesseis horas e poucos
minutos, os extra- quadros se despediam , já um pouco saudosos -
não retornariam nas futuras segundas-feiras.
Aqueles que tomaram o bonde
que fazia o retorno, ficaram em pé, na cabina posterior, donde o psicodélista, gargalhando, passou a
descompor um carregador de dormente: :”
vamos agarrar, vamos agarrar, força molenga. Assim não dá...” Enquanto o
bonde se afastava , o neo desafeto avançava com uma corrente na mão e ódio no
olhar...
Acaso,
Inesperado, e Coincidência , três trânsfugas
Cavaleiros do Apocalypse se uniram ao Quarto Cavaleiro, o motorneiro,
obrigado a estancar. de súbito - falta de força no cabo elétrico ou
excesso de força no cabo do freio.
Cena coincidente com a
presença de um cinegrafista filmando: em vermelho, a careta do desafeto;
em branco, como véu de noiva, a cara do pré-afetado, noiva, em
preto, seu braço direito em 90 graus e mão esquerda em
45 graus, a um passo de
completar a última banana!
Mas, tudo faz crer
que a força elétrica voltou antes do
pior...
Assim, prometendo
reencontros periódicos, os bacanas extra-quadros desapareceram, como tudo
que some. Talvez se reencontrariam...
Um outro olhar.
Ponteiros do relógio altaneiro, indiferentes, marcavam 20
horas. Via látea não havia acordado e a lua dormia do lado
oposto. Escuridão noturna, é claro.
Naquela
avenida comprida, por aqueles quarteirões intermináveis, passeava
um sobrevivente extra-quadro, caminhante aflito dos tempos
idos. Não ligava para os ponteiros do relógio acima, e
estes pouco se importavam com o debaixo. Cercado por
todos os lados pelos apressados, ele dizia para si mesmo:”grande coisa”.
Barulho
multifário - gente em todos sentidos, carros para lá e para
acolá, metrô lá nas profundezas!
Súbito,
um cometa, tal e qual ao que a gente imagina,
como um jegue luminoso cavalgado por um dos extra-quadro,
velocíssimo, atravessa o céu..Ninguém o via, ouvia ou sentia,
exceto o sobrevivente, por definição,. único remanescente dos
bacanas do AG. Seu pé direito descia sobre o asfalto,
enquanto o outro ainda se apoiava na beira da calçada, quando,
abruptamente, um carro em louca disparada , por pouco não o despedaça, e mais
loucamente, ainda, desaparece ao longe, feito um ponto preto ou uma meia
virgula escura.
Grande
susto e um instantâneo revelador:
- Oi, você
ai meu velho, quê andas fazendo
que ainda não veio? Brada o cavaleiro do cometa.
- Oh!
Meu caro , como vão vocês?
- Muito
bem. Não temos fichas,nem maquinas de escrever ,nem superstição!
Não existe causa e efeito, as coisas acontecem
imperceptíveis - o que não falta é um pouco de
felicidade para todos, conforme a índole e a necessidade de cada um. A gente
adora o poderoso, todo paisão - nunca aparece, mas têm-se certeza
que está sempre conosco....
-
Maravilha, parece celestial!
- Pois é ,
adiantou o cavaleiro ex-ex. Eu estava encarregado de transporta-lo, mas
você não entrou com o pé esquerdo no asfalto...
E o cometa
some para o outro lado, feito um ponto incandescente ou uma meia virgula brilhante.
Pedestres
mais próximos param assombrados.
E, mais
ainda, quando notam a feição alterada do velho, que logo se recompõe –com um
sorriso, e uma fala em surdina:
-Todos já se foram, que pena! Mas,
antes eles do que eu...
Luis
Gastão Costa Carvalho Serro-Azul SP. 13/08/1943 -13/08/2014
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